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Quase foi o “liberou geral”



Em 1968, durante uma sessão plenária do Supremo Tribunal Federal, o então ministro Adauto Lúcio Cardoso, envergonhado de seus pares que haviam acabado de legitimar a censura à imprensa, despiu-se da toga e a arremessou longe. Hoje, com raríssimas exceções, o STF se ressente de ministros com a coragem do ex-colega da Corte. O STF alcançou o estágio de desmoralização atual porque muitos ali são incapazes de distinguir espírito de grandeza de grandeza de espírito. Enquanto o primeiro lhes sobra, falta-lhes o outro. Contrariando o artigo 102 da Carta Magna, o STF, em vez de guardião da Constituição e fiador da estabilidade, tornou-se nos últimos tempos um vetor de insegurança jurídica e desagregação social. O ativismo judicial do qual investiram-se certos ministros não apenas envergonha a Nação, como concorre para desacreditar o Judiciário perante a sociedade brasileira. Para atender a interesses inconfessáveis, certos integrantes do STF não se importam em enlamear as próprias togas — paramentos que deveriam ser o símbolo sacrossanto da imparcialidade e seriedade da Corte, mas que viraram a representação e o retrato mais bem acabado da perda completa de noção ética.
Não há mais como descer na escala da degradação institucional. Na quarta-feira 19, um dia antes do recesso do Judiciário, a presepada burlesca dos homens de preto alcançou o seu auge, quando o ministro Marco Aurélio Mello resolveu, com uma canetada, libertar todos os 169 mil presos que foram condenados no País por tribunais de segunda instância. Uma medida que — sabe-se — pretendia alcançar o mais notório deles, o ex-presidente Lula, que há seis meses vê o sol nascer quadrado a partir de uma sala-cela na sede da Polícia Federal em Curitiba. A aberração jurídica de Marco Aurélio durou apenas pouco mais de cinco horas. E não libertou ninguém. Tempo suficiente, de todo modo, para vastas consequências negativas na já amarrotada imagem da instituição. É a segunda vez em dois anos que Marco Aurélio, com esperteza típica de político mal intencionado, vê-se à frente de uma decisão jurídica que contribuiu apenas para desmoralizá-lo pessoalmente e aos demais dez colegas. Em 2016, o então presidente do Senado, Renan Calheiros (MDB-AL), tornara-se réu por crime de peculato (desvio de dinheiro público), acusado de destinar parte da verba indenizatória do Senado para uma locadora de veículos que, para a Procuradoria Geral da República (PGR), não teria prestado serviço algum. Quatro dias depois de Renan tornar-se réu, o ministro Marco Aurélio Mello expediu uma liminar atendendo a um pedido do partido Rede Sustentabilidade, e afastou Renan da presidência do Senado. A justificativa jurídica era que Renan, como réu, não poderia fazer parte da linha sucessória da Presidência. Renan simplesmente ignorou a decisão de Marco Aurélio. Diante da iminência de uma crise entre os Poderes, o plenário do Supremo acabou por revogar a decisão.
Conhecido pelos colegas como “ministro voto vencido”, outra vez Marco Aurélio viu-se às voltas com decisões que provocam polêmica e nenhum resultado prático. “O enfrentamento à corrupção revelou na Suprema Corte uma divisão marcante”, avaliou à ISTOÉ o ministro Luís Roberto Barroso. “Passamos a viver um embate entre os defensores da nova ordem e os guardiões da velha ordem”. Na prática, o STF funciona como uma espécie de arquipélago com 11 ilhas de decisões ou 11 Supremos independentes. O próprio Marco Aurélio incentiva esse modelo ao pregar que “cada qual faça a sua parte, com desassombro”. Se os 11 togados seguirem à risca a recomendação, o vale-tudo de embates não terá fim. Barroso tornou-se um dos principais atores desses embates. Marcou o ano de 2018 sua discussão com Gilmar Mendes durante o julgamento que ratificou a prisão de Lula, quando Barroso, provocado por Gilmar, lhe respondeu: “Você é uma pessoa horrível, uma mistura do mal com o atraso com pitadas de psicopatia”. Não era a primeira vez que vetustos senhores de toga quase iam às vias de fato no plenário. Em 2009, Gilmar Mendes já havia protagonizado um debate por demais acalorado com o ex-presidente Joaquim Barbosa. “Felizmente, a coisa mais importante que aconteceu no Brasil foi o surgimento de uma imensa demanda por integridade”, comemora Barroso. “Esse é um novo paradigma que muda a história”. Infelizmente, nem todo o STF parece ter compreendido. Hoje, o tribunal deixou de se comportar como um colegiado para tornar-se uma soma de individualidades. Não por acaso, a Corte sofre do mais absoluto descrédito