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Apocalipse: o Rubicão de Edir Macedo

O ex-global Flavio Galvão vive o mentor do capeta em Apocalipse
O ex-global Flavio Galvão vive o mentor do capeta em Apocalipse (Reprodução)
Por Alexis Parrot*
A estreia de Apocalipse, última incursão da TV Record na teledramaturgia, deve acender um sinal de alerta para qualquer um que tenha bom senso, independente da religião que professa.
Depois da fase de novelas bíblicas de época (onde, a julgar pelo sotaque dos atores envolvidos, a foz do Nilo fica mesmo é em Braz de Pina) a emissora do "bispo" Edir Macedo traz agora a Bíblia para os tempos atuais. Mais que simples jogada de proselitismo religioso, trata-se do escancaramento de um projeto político-ideológico que já havia começado às custas de Davi, Moisés e companhia.
Agora é o livro com as visões do apóstolo João que ganha as ruas. Suas revelações sobre o juízo final podem ser mesmo assustadoras, se manipuladas para apenas assustar. Se é medo o que quer disseminar a Igreja Universal do Reino de Deus, a escolha do epílogo da Bíblia parece mesmo ideal.  
Porém, dessa vez, como Julio César ao atravessar o Rio Rubicão para tentar tomar o poder do Império Romano - uma decisão sem volta - Edir Macedo parece ter ido longe demais.
Ao apresentar uma "fictícia" igreja romana, existente há mil e setecentos anos, liderada por um sacerdote com ares papais, cujos membros vestem-se como cardeais da Igreja Católica, simplesmente dizer que não se trata de uma representação da Igreja Católica, não basta. Na verdade, não cola. E podemos esperar manifestações de indignação vindas de todos os lados.
É dentro desta igreja que o anticristo será treinado e mimado para, no seu tempo, acabar com o mundo como o conhecemos.
Resta claro o que a novela almeja: incentivar o crescimento de mais uma classe de haters dentro do universo evangélico, o catolicofóbico; e, talvez, converter novas almas e amealhar mais pagantes de dízimo e correntes para dentro de seus templos.
O plano em curso (a estreia de Apocalipse é apenas o golpe mais ousado desferido até hoje) não para por aí: mais fiéis significam também mais eleitores induzidos a eleger representantes legislativos em assembleias estaduais por todo o país e no Congresso Nacional, prontos a defender agendas moralistas e retrógradas.
Após uma consolidação ainda mais efetiva da bancada da Bíblia (sempre associada com a bovina bancada dos ruralistas), é de se esperar que o judiciário seja um próximo alvo de atuação. Se você manda em quem faz as leis e em quem as aplica, quem é que precisa de um presidente no bolso?
A única coisa que pode atrapalhar os planos da novela é a própria novela.
O México é aqui
Apesar de todo o estardalhaço no lançamento, todo o dinheiro investido, todos os prometidos efeitos especiais, o elenco numeroso e com alguns nomes de fato talentosos... todos os esforços empreendidos para fazer da nova novela um grande acontecimento podem dar em nada. A primeira semana da novela mostrou que Apocalipse pode entrar para a história como uma grande comédia de erros.
O folhetim começa vago e muito preciso ao mesmo tempo: "final dos anos 80 / 10 da manhã". Lembra o artifício cômico usado pela trupe inglesa Monty Phyton, em vários de seus esquetes e filmes; como nas Aventuras do Barão de Münchausen, dirigido por Terry Gilliam: "Final do século XVIII / A era da razão / quarta-feira".  
A Record quer para si a pecha de uma revolução recente da teledramaturgia a partir da adaptação de histórias bíblicas. Mas se olharmos direito, a Bíblia não é novidade nenhuma na televisão. A icônica Dallas, por exemplo, podia muito bem se passar na Galileia da época de Jesus; era só trocar a disputa pelos poços de petróleo por plantações de oliveiras.  
Mesmo que indiretamente, o Antigo Testamento, com suas sagas familiares recheadas de traição, sexo, sangue e violência, tem sido inspiração para novelas e séries - desde que Caim matou Abel.
O fato de Apocalipse ser baseada em um livro do Novo Testamento não muda este cenário. O tom ameaçador é o mesmo que já vimos em outras produções da emissora. Apenas o que antes era literal, agora virou... dispensável. E, em muitos casos, continuou literal.
As sete igrejas da Ásia, citadas no início do livro do Apocalipse, para as quais Jesus estaria mandando um aviso, tornaram-se sete personagens (Esmirna, Éfeso, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodiceia) que ganharão relevância capital na trama, à medida que a história for andando; muito embora o expediente não seja dos mais adequados. Ou você conhece alguém que se chama Laodiceia? Ou Tiatira?  
A autora evangélica (a mesma de Os Dez Mandamentos), Vívian de Oliveira, disse em entrevista que ela e equipe de colaboradores passaram quase um ano preparando a novela. Pelo jeito não foi o suficiente. E seria bom também se tivessem assistido mais à obra de Gloria Perez, uma especialista em fazer parecer que a Índia ou o Marrocos ficam logo ali, ao virar a esquina.
Como ambientar uma trama em Jerusalém hoje e ignorar que é uma cidade dividida entre israelenses e palestinos? Teremos uma árabe apenas na próxima fase da novela, vivida por Carla Marins. Porém, segundo a sinopse divulgada pelo canal, ela viverá uma árabe cristã orgulhosa por engrossar as fileiras do serviço obrigatório no exército israelense - algo que realmente acontece; em número muito pequeno, mas acontece.
Mas, em uma novela que deseja ter a cidade sagrada das três principais religiões do mundo como um dos núcleos centrais da trama, escolher como único árabe presente uma personagem baseada na exceção é querer tapar o sol com a peneira; é contar para o público uma meia verdade.
O texto muito empolado dos diálogos e os sotaques muito caricaturais de judeus e italianos (apenas dos personagens mais velhos; os jovens soam como se estivessem em Ipanema) competem para trazer toda uma aura de artificialidade às cenas. Os atores parecem estar sendo dublados.
Tudo isso embalado por uma trilha musical grandiloquente e exagerada em todas as situações, faz com que esqueçamos tratar-se de uma novela. A impressão é que estamos assistindo àquelas sofríveis reconstituições de testemunhos de crentes arrependidos dos programas de pastores evangélicos que varam as madrugadas.  
No final, podemos esperar a velha luta do bem contra o mal, o capeta em pessoa liderando a turma das trevas. Contra eles, se insurgirá uma falange composta por alguns dos protagonistas. Serão chamados de "santos da resistência" - uma apologia aos "gladiadores do altar", milícia em formação dentro dos templos da Universal?
Pode até ser, mas a novela beira tanto o ridículo que lembra mais uma outra batalha, acontecida nos anos 90, em outra novela de outra emissora. Estou falando de Vamp, onde a cidade de Armação dos Anjos se levantou contra as forças lideradas pelo hilário vampiro Vlad de Ney Latorraca. A grande diferença: lá o objetivo era mesmo fazer rir.
Pelo que já vimos até agora, Apocalipse está mais para uma novela mexicana sobrenatural; cruza de A Usurpadora com o Bebê de Rosemary. A Record e Edir Macedo vão aprender da pior maneira possível que a comédia mais infeliz é a involuntária.
Mas, é como disse Julio César: "alea jacta est"