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Miséria, dignidade e Constituição

A imagem retratada expõe miséria e degradação, não há oportunidade para as pessoas coisificadas serem mais do que aquela realidade, castradora cruel de sonhos, permite.
A imagem retratada expõe miséria e degradação, não há oportunidade para as pessoas coisificadas serem mais do que aquela realidade, castradora cruel de sonhos, permite. (Divulgação)
Por Edson Roberto Siqueira Jr.*
No museu é possível ver um quadro cuja paisagem diz mais que à primeira vista um olho desatento pode perceber. Nas construções inacabadas, amontoadas e sem pintura consigo ver pessoas que se assemelham a objetos, coisas. São, em verdade, pessoas tratadas como objetos, desprovidas de qualquer dignidade.
Não há, eu vejo, condições de sobrevivência. O aspecto das pessoas/coisas não é dos melhores. Parece-lhes faltar comida, não há higiene. Saneamento? Não existe.
Mas estão numa cidade, local adequado ao desenvolvimento humano e onde o Estado deveria prover o mínimo para a existência digna. Entretanto, não é isso que o quadro mostra. A imagem retratada expõe miséria e degradação, não há oportunidade para as pessoas coisificadas serem mais do que aquela realidade, castradora cruel de sonhos, permite.
Pergunto à pessoa que me ladeia, esta com dignidade e sabedoria aparentes, com aspecto de filósofo: Mas Kant não disse que “o homem, e duma maneira geral, todo ser racional, existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio para uso arbitrário desta ou daquela vontade”?
 - Mas o que você quer dizer? Indagou assustado e sem nada entender o meu colega de museu.
- Explico: aquelas pessoas do quadro que estamos olhando estão retratadas como coisas, não há dignidade e isso só pode ser consequência de não serem consideradas fim em si mesmas.
Após pensar por poucos segundos fui surpreendido pelo presumido filósofo ao dizer que era professor universitário de direito constitucional e, desta forma, trouxe a discussão para o aspecto dogmático ao afirmar que a Constituição consagrava como fundamento do Estado Brasileiro a dignidade da pessoa humana.
- Mas como isso é possível? Foi a indagação que não segurei quase não o deixando terminar a frase, e continuei: Nas nossas cidades as pessoas morrem de fome, não tem saúde e educação. A Constituição é só uma folha de papel!
Pacientemente explicou que realmente houve um tempo em que se pensava que os escritos na Constituição somente teriam força se expressassem o real jogo de poder da sociedade, mas que um alemão, chamado Konrad Hesse, havia defendido que a Constituição tem força normativa, ainda que o que esteja escrito não corresponda à distribuição dos poderes e, assim, mudou-se aquela forma de pensar.
Agora, então, minha vez de ficar pensativo por alguns segundos. Após, não contive a pergunta: Quer dizer que a Constituição pode mudar a realidade? Que tem força para dar dignidade às pessoas?
E, novamente com paciência exemplar, meu interlocutor ensinou que em alguns casos a Constituição pode realmente não ter força diante dos fatos sociais, mas que isso não é regra, ela, quase sempre, tem força para reorganizar o contexto social desde que exista vontade de Constituição.
- Agora é que não vai dar certo mesmo! Exclamei indignado emendando nova afirmação: se for preciso vontade para que as pessoas sejam tratadas com dignidade nas nossas cidades, ninguém vai pintar um quadro diferente deste aqui na nossa frente, será preciso “brigar na Justiça”.
- Exatamente, disse o agora exaltado, posso dizer, amigo. A Constituição tem como guardião o Poder Judiciário que deve interpretá-la com vontade de Constituição. O texto constitucional diz algo, quem quer compreender um texto deve estar disposto a deixar que este lhe diga alguma coisa.
E continuou sem respirar: o interprete já traz consigo sua compreensão de mundo e a tradição de sua comunidade que usa para interpretar o texto e, num giro hermenêutico, extrai o sentido a partir da simbiose entre a tradição e o texto.
Vendo na minha face uma interrogação e aparentemente pra deixar mais fácil meu entendimento, explicou: há troca de informações entre o texto e a tradição que traz o interprete saindo, daí, o sentido. Texto e tradição limitam a interpretação, sentenciou meu professor!
E completa: posso dizer, assim, que a “Justiça” tem que interpretar a Constituição considerando a dignidade da pessoa humana e o contexto atual para acabar com a miséria que está neste quadro.
Não me contive e provoquei: mas nem mesmo a “justiça” tem essa vontade de Constituição, não é Professor?
Com a cabeça sinalizando negativamente respondeu que não, tendo seu rosto deixado a sensação de frustração daqueles que sonhavam e idealizavam um mundo melhor e se decepcionaram com a não realização das expectativas juvenis.
 O quadro, não duvido, continuará da mesma maneira, afirmou meu professor.